19 February 2011

04 December 2010

Bloom


Bloom sempre fora um homem destemido. Quando o seu vizinho, o químico Joseph Schrafft, o convidou para testar a sua nova invenção, Bloom não hesitou. Tornou-se assim na primeira da pessoa da História a provar um rebuçado de sabor a limão feito apenas com cinco dos cento e vinte químicos que fazem parte do sumo do limão natural. Nem recusou o pedido de ser o piloto de testes do veículo movido a urina do Sr. Samuel Black. Veículo esse que não chegou a arrancar pois o Sr. Black atestara o veículo com a sua própria urina e, como viria a ser diagnosticado dias mais tarde, padecia de uma grave doença renal e as proteínas presentes no combustível alternativo entupiram o filtro, que tinha sido reutilizado de uma velha máquina de diálise.

Se não lhe faltava coragem em vida, também não lhe faltaria coragem na morte. E foi cheio de certezas e a bater no peito cheio de ar, que Bloom escreveu a sua nota de suicídio. Enquanto se dirigia para a loja de ferragens para adquirir um descaroçador de azeitonas, peça essencial na sua máquina de passagem para o outro mundo, escorregou numa pedra de calçada lisa e coberta de geada da madrugada anterior. O autor deste texto teve de recorrer a testemunhas oculares para vos poder relatar o resto da estória, pois a vítima não tem memórias do que se seguiu: os pés de Bloom poisariam de volta no solo só depois dos seus testículos embaterem num pequeno poste de metal, concebido e colocado no passeio para impedir estacionamentos abusivos.

Regressado à consciência no Hospital Central da cidade, Bloom não tinha mudado de ideias nem via a vida com novos olhos, como acontece com tantas vítimas de acidentes. Pelo contrário, agora parecia-lhe mais amarga que as guloseimas do Sr. Schrafft. No entanto, enquanto tinha alta do Hospital e remexia no saco com os seus pertences, ao encontrar o descaroçador de azeitonas, Bloom apercebera-se que a sua coragem tinha também seguido para o contentor de resíduos biológicos e que a próxima vez que a veria seria desfeita em fumo negro da grande chaminé do incenerador.

O suicídio estava posto de parte. Mas não a vontade de morrer.  No dia seguinte, despediu-se do seu cubículo nas Finanças e foi bestialmente decidido até à fábrica de armas, pólvora e afins. Era agora o sujeito em quem era testada a veracidade da designação dos coletes à prova de bala.

Viveu amargurado até aos 102 anos.

Bartolomeu Pessanha

17 November 2010

Histórias do antigamente

Estendeu-me a mão, olhei-a um bocado antes de lhe dar um aperto. Uma mão húmida e flácida foi o que senti..quase que jurava estar a sentir na minha mão toda a essência daquela personagem que me olhava com aquele ar cínico. Tentei sorrir de forma cordial, mas apenas me saiu um esgar de desprezo que até uma criança inocente notaria. Fingiu que nada se tinha passado e disse naquela voz arrastada "como vai essa vida caro amigo?". É incrível como hoje em dia se usa a palavra amigo de forma tão ligeira, a não ser que fosse uma daquelas ironias que as almas amarguradas espalham pelo mundo. "Vai bem e a sua?" respondi-lhe no tom o mais disfarçado possível pois tudo em mim implorava que da minha boca não saísse mais do que saliva. Nem sequer me respondeu.."faça o favor de se sentar" disse-me apontando-me uma simples cadeira de madeira enquanto se sentava num confortável  cadeirão. Encostei as costas contra aquela cadeira onde já dezenass de desgraçados tinham sentido o que eu hoje sentia..a mais pura repugnância. "A empresa está a passar por dificuldades como já se deve ter apercebido" olhei-o e pensei porque não me dizia logo que estava despedido em vez de estar com este palavreado. A empresa não estava a passar por dificuldades, a única dificuldade era este individuo que tinha o dom de ser um zero nos negócios. "Já me apercebi Sr. doutor" disse eu entrando naquele jogo deprimente. "Infelizmente não temos condições para que o senhor continue a trabalhar aqui. Não tardará muito para que tenhamos que despedir todo o pessoal". Olhei para o pulso dele e vi um relógio da D&G, não custaria menos de 500 euros certamente, lá em baixo no lugar reservado à administração estava estacionado um mercedes classe E. "É a vida que podemos fazer? " respondi eu enquanto me levantava e me dirigia para a porta sem a noção do que iria passar nos próximos tempos. "Desejo-lhe tudo de bom meu amigo" parei..voltei-me para trás e fiz aquilo que cada átomo do meu corpo desejava. Que estranha vida..dois sentimentos antagónicos..a tristeza de quem perde o emprego e o gozo absoluto quando vi aquela cara enojada com a minha saliva a escorrer-lhe qual cascata do niagara. Fechei a porta e senti-me vivo como nunca.

Lívio Tavares

14 November 2010

Histórias do antigamente

Já lá vão 48 anos desde que comprei o meu primeiro maço de cigarros. Comecei com 12 anos e arranjei no tabaco um amigo sempre presente. Aquelas frias madrugadas em que esperava pela carreira para ir para a cidade, não havia nada como acender um cigarro. E quando nasceram os meus filhos, só os belos cigarros me acalmaram o nervosismo.
Agora os malditos puritanos não me deixam fumar onde quero. Obrigam-me a ir para a rua fumar porque dizem que faz mal à saúde. Tenho 60 anos e nunca tive problemas com o tabaco, mas já tive muitos com a bosta que os cães e os donos dos cães deixam pela rua e  nunca vi nenhum puritano proibi-los de passear aqueles cagões com quatro patas! Esses malditos puritanos deviam esfregar a cara nas minhas botas quando piso aquela merda e dizerem-me se não preferiam estar a levar com o meu fumo na cara! Mas pronto..um gajo tem que se aguentar. Fumo mais um e volto para o trabalho.
Agora há cada vez menos clientes..qualquer dia o patrão manda-me para o olho da rua. Se calhar dedico-me a arrumar carros como os animais dos drogados que andam espalhados pela cidade. De certeza que ganhava mais do que nesta mariquice de emprego.
Chego a casa e tenho que ouvir a minha mulher. O raio do miúdo tirou mais uma nega nos testes. Não sei a quem sai o fedelho tão burro. E pior..tem a mania que é esperto. Sacana do puto..15 anos e ainda está no 7º ano. Será assim tão difícil perceber que Portugal foi fundado em 1143? Quatro simples números e o burro do puto não decora? Mas não há nada a fazer..o puto é burro que nem uma porta. O que me vale é o António..19 anos e está no 2º ano de Engª Química. Este sim tenho a certeza que é meu filho. Tenho mesmo pena que não tenha vindo para ir comigo à caça.
4 da manhã..que sossego..fumo um cigarro..como qualquer coisa e meto-me no carro. A espingarda e os cartuchos já tinham sido metidos no carro no dia anterior. Sigo para o alentejo..espero que desta vez tenha mais sorte e apanhe uns poucos de coelhos. Vou a abrir..145 km/h..nestas estraditas secundárias não andam os chuis..andam pelas principais a tentar levar uns tostões a mais para casa. E o país cheio de marginais..a esses não fazem eles nada!
Olho para o cinzeiro e vejo que está cheio..abro o vidro e deito a cinza lá para fora..aquela gaita entra quase toda para o carro..atrapalho-me..perco controlo do carro..e o último pensamento..merda o tabaco mata mesmo.

Lívio Tavares

17 October 2010

Dark Tranquillity

Hoje acordei com dor de cabeça. Daquelas latejantes que não te deixam pensar decentemente, mas que não são suficientemente fortes para te queixares sem te sentires um fracote. De facto, não me queixo e como nunca fui dotado que grande capacidade cognitiva, não é a falta de pensamento que me vai incomodar. Aliás, acordei numa cama que me é desconhecida.

"Agora é que o pensar vinha mesmo a jeito. Como vim cá parar?" pensei. Olho à volta. O papel de parede cheira a mofo e sabe a pão com bolor. Havia um espelho pendurado partido que espero não ter sido eu a partir. Toda a gente sabe que dá azar. Para grande espanto meu, está um guarda-chuva aberto do meu lado da cama e fico boquiaberto ao reparar que acima de mim flutuava uma escada. Começo a tremer. Pouso os braços na cama. É uma cama de casal. Ao meu lado estende-se um corpo de uma garota. Não respira.

"Apneia de sono" iludi-me. "Nunca mais fodo uma gorda" menti. Levanto-me da cama e nesse momento uma lufada de ar preenche os pulmões da miúda. Surpreendido, confirmo o meu diagnóstico. Visto-me rapidamente mas silencioso para não a acordar e fujo do quarto. Fui dar a uma rua que não conheço. O meu relógio avisa-me que estou atrasado para o emprego.

"Parabéns palerma" congratulo-me "é desta que perdes mesmo o teu emprego!"
Olho para o céu e o sol cega-me. Desejei ter um ataque de coração. E o desejo tornou-se realidade...

Jesus Intempéries

15 October 2010

Estória do rapaz que tinha um poster do Dr. Tulp na parede do quarto

O rapaz nasceu em 1986. Desejado, filho único, o rapaz é criado de forma rude mas correcta. Estuda na vila e passa os finais de tarde a ajudar o pai a recolher as ovelhas. Na noite do Santo Moisés, com 10 anos completados há duas semanas, o seu avô deixa-o pela primeira vez assitir a uma ovelha a parir. Passa as horas do acto num canto escuro do celeiro e a madrugada em branco, a pensar nos líquidos e moles que saíram de dentro do bicho, sem nenhuma ideia cair sobre o novo bezerro neste mundo. Daí para a frente, assistiria a mais cinco partos do rebanho da família, antes de ganhar coragem para pedir autorização para absorver também os partos dos rebanhos dos vizinhos.
A excitação era grande e rapidamente evoluiu para as matanças do porco. Mais do que a carne fresca, o rapaz celebrava a oportunidade de ver o interior do porco, os ossos e os vasos.

Curioso e incentivado pela sua professora de Ciências Naturais, o rapaz troca as tardes de recolha de ovelhas dos campos pelas tardes de recolha de informação dos livros e aplica-se a sério nos estudos. Entra em Medicina na Universidade Nova de Lisboa.

As melhores horas da vida deste caloiro são agora as horas que passa nas aulas práticas de Anatomia. Ou talvez as horas que passa sozinho, a folhear o Atlas de Anatomia, entre outros líquidos e outros moles.

Mas a solidão numa residência universitária nunca é uma verdadeira solidão e, traído pelo colega de quarto e a troco das propinas pagas, aceita ser entrevistado num programa televisivo de um canal de três letras. Usa uma máscara branca, adereço do "Fantasma da Ópera", e a sua voz é disfarçada, como se soasse através de um funil.

Os seus jeitos não enganam ninguém e a máscara não lhe esconde a substância. É marginalizado pelos seus colegas e professores, que o obrigam a regressar à vila, só para descobrir a família a limpar os destroços carbonizados do celeiro.


Vive agora com o seu pai e a sua mãe na Nazaré, como pescador de marisco e apanhador de percebes na altura deles. A sua mãe ainda se preocupa quando o encontra a olhar para as redes esticadas, repletas de peixes dissecados, a secar ao sol, enquanto assobia melodias de tempos mais felizes...

Bartolomeu Pessanha

04 September 2010

The Pretender

Alguém via a séria "The Pretender" que esteve no ar entre 96 e 2000? Para quem não viu consistia num homem que era perseguido por uma instituição que tinha aproveitado o facto de ser sobredotado para o tornar capaz de exercer qualquer actividade e da qual ele tinha fugido. Apeteceu-me falar nisto porque quando oiço algumas pessoas falar penso se não se tratarão de "Pretenders"..é que independentemente da área profissional a que pertencem eles simplesmente julgam perceber de tudo. É caso para dizer que em Portugal existem inúmeros casos de "Síndrome Pretender" com um toque subtil mas também frequentemente presente de mania da perseguição. 
Afinal a série "The Pretender" não foi cancelada no ano 2000..ela simplesmente desenrola-se no dia à dia do povo português.

P.S. a série (a verdadeira e não o "Sindrome Pretender") dá neste momento na FOX.

Lívio Tavares