15 October 2010

Estória do rapaz que tinha um poster do Dr. Tulp na parede do quarto

O rapaz nasceu em 1986. Desejado, filho único, o rapaz é criado de forma rude mas correcta. Estuda na vila e passa os finais de tarde a ajudar o pai a recolher as ovelhas. Na noite do Santo Moisés, com 10 anos completados há duas semanas, o seu avô deixa-o pela primeira vez assitir a uma ovelha a parir. Passa as horas do acto num canto escuro do celeiro e a madrugada em branco, a pensar nos líquidos e moles que saíram de dentro do bicho, sem nenhuma ideia cair sobre o novo bezerro neste mundo. Daí para a frente, assistiria a mais cinco partos do rebanho da família, antes de ganhar coragem para pedir autorização para absorver também os partos dos rebanhos dos vizinhos.
A excitação era grande e rapidamente evoluiu para as matanças do porco. Mais do que a carne fresca, o rapaz celebrava a oportunidade de ver o interior do porco, os ossos e os vasos.

Curioso e incentivado pela sua professora de Ciências Naturais, o rapaz troca as tardes de recolha de ovelhas dos campos pelas tardes de recolha de informação dos livros e aplica-se a sério nos estudos. Entra em Medicina na Universidade Nova de Lisboa.

As melhores horas da vida deste caloiro são agora as horas que passa nas aulas práticas de Anatomia. Ou talvez as horas que passa sozinho, a folhear o Atlas de Anatomia, entre outros líquidos e outros moles.

Mas a solidão numa residência universitária nunca é uma verdadeira solidão e, traído pelo colega de quarto e a troco das propinas pagas, aceita ser entrevistado num programa televisivo de um canal de três letras. Usa uma máscara branca, adereço do "Fantasma da Ópera", e a sua voz é disfarçada, como se soasse através de um funil.

Os seus jeitos não enganam ninguém e a máscara não lhe esconde a substância. É marginalizado pelos seus colegas e professores, que o obrigam a regressar à vila, só para descobrir a família a limpar os destroços carbonizados do celeiro.


Vive agora com o seu pai e a sua mãe na Nazaré, como pescador de marisco e apanhador de percebes na altura deles. A sua mãe ainda se preocupa quando o encontra a olhar para as redes esticadas, repletas de peixes dissecados, a secar ao sol, enquanto assobia melodias de tempos mais felizes...

Bartolomeu Pessanha

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