17 November 2010

Histórias do antigamente

Estendeu-me a mão, olhei-a um bocado antes de lhe dar um aperto. Uma mão húmida e flácida foi o que senti..quase que jurava estar a sentir na minha mão toda a essência daquela personagem que me olhava com aquele ar cínico. Tentei sorrir de forma cordial, mas apenas me saiu um esgar de desprezo que até uma criança inocente notaria. Fingiu que nada se tinha passado e disse naquela voz arrastada "como vai essa vida caro amigo?". É incrível como hoje em dia se usa a palavra amigo de forma tão ligeira, a não ser que fosse uma daquelas ironias que as almas amarguradas espalham pelo mundo. "Vai bem e a sua?" respondi-lhe no tom o mais disfarçado possível pois tudo em mim implorava que da minha boca não saísse mais do que saliva. Nem sequer me respondeu.."faça o favor de se sentar" disse-me apontando-me uma simples cadeira de madeira enquanto se sentava num confortável  cadeirão. Encostei as costas contra aquela cadeira onde já dezenass de desgraçados tinham sentido o que eu hoje sentia..a mais pura repugnância. "A empresa está a passar por dificuldades como já se deve ter apercebido" olhei-o e pensei porque não me dizia logo que estava despedido em vez de estar com este palavreado. A empresa não estava a passar por dificuldades, a única dificuldade era este individuo que tinha o dom de ser um zero nos negócios. "Já me apercebi Sr. doutor" disse eu entrando naquele jogo deprimente. "Infelizmente não temos condições para que o senhor continue a trabalhar aqui. Não tardará muito para que tenhamos que despedir todo o pessoal". Olhei para o pulso dele e vi um relógio da D&G, não custaria menos de 500 euros certamente, lá em baixo no lugar reservado à administração estava estacionado um mercedes classe E. "É a vida que podemos fazer? " respondi eu enquanto me levantava e me dirigia para a porta sem a noção do que iria passar nos próximos tempos. "Desejo-lhe tudo de bom meu amigo" parei..voltei-me para trás e fiz aquilo que cada átomo do meu corpo desejava. Que estranha vida..dois sentimentos antagónicos..a tristeza de quem perde o emprego e o gozo absoluto quando vi aquela cara enojada com a minha saliva a escorrer-lhe qual cascata do niagara. Fechei a porta e senti-me vivo como nunca.

Lívio Tavares

2 comments:

  1. Mais uma bela adição ao um impressionante repertório.
    Um reparo, não será esta História de Antigamente, uma história dos dias que correm?

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  2. É a simples demonstração de que nos tempos que correm estamos a regredir. No fundo contar uma história de hoje é o equivalente a contar uma história do antigamente.

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